July 17, 2013

Os pobres também se apaixonam



Ficámos ali, imóveis, em silêncio. Dois corpos voláteis a arrefecer, lentamente, ao seu ritmo. Eu e tu. Inspirando, expirando, deixando  o ar entrar, renovado, e fazendo com que o sangue voltasse, pouca a pouco, a percorrer o corpo todo. Artéria a artéria. Também ele, ao seu ritmo.

Não sei quanto tempo passou... Nem tão pouco interessa. O tempo é muito relativo. Sempre tive dificuldade em perceber porque nos demos ao trabalho de inventar segundos, horas, meses e anos, num esforço vão de medir algo maior do que o próprio conceito de dimensão. Porque há segundos que duram meses, e anos que passam num minuto.

Roubaste-me um beijo, passaste-me a mão pelo rosto, e sorriste com os olhos. Olhando o céu que nos tapava, lembraste-me que as estrelas são nossas e que os planetas, no seu perpétuo movimento, nos vão mostrando que tudo na vida é uma questão de referencial e da direcção em que escolhemos olhar. Não sei quem gira em torno de quem. Mas, mais uma vez, não interessa.

Acordei de manhã, com as primeiras gotas de orvalho a condensar sobre a minha pele descoberta. No teu pedaço de terra, deixaste um recado, escrito com uma vara tosca que por ali repousava: "Na vastidão do tempo e na imensidão do espaço que fazem o Universo e a sua História, é um privilégio conseguirmos partilhar um instante. O que era ontem é hoje e o que é aqui está mais além. Inventa-me um coração e ensina-o a bater".


Hoje escrevi-te um poema interminável que não cabe dentro de si. Como o tempo. Como o espaço. Como nós. Sei que um dia voltaremos a sonhar.

July 08, 2013

A menina que escrevia




A luz riscada que passava pelos estores entreabertos pintava de laranja o quarto rosa-princesa (e um tanto ou quanto piroso) da Rosarinho. Diogo era um tipo estranho: gostava de ficar ali sentado na cama a olhar para a bonecada estacionada na estante, e de imaginar o que fariam aqueles Zés quando ninguém estava a olhar.
Emoldurada junto à cabeceira, estava a primeira composição de "Muito Bom" da Rosarinho.

"Os meus pais
Os meus pais são adultos mas já foram pequenos. A minha mãe chama-se Maria Beatriz é bonita e cheira bem. O meu pai é o Diogo, também é bonito e cheira mais ou menos bem. A minha mãe é médica dos velhinhos e o meu pai é engenheiro da electricidade e dos choques.
O meu pai diz que se fosse um animal queria ser um polvo para me agarrar com os braços todos, mas eu não gosto de polvo porque é um bicho um bocado porco que manda uma tinta preta pela boca.
A minha mãe está sempre a dizer ao meu pai para ele não tentar arranjar as torneiras quando elas se estragam porque é pior a amêndoa que o cimento. Mas eu gosto mais de amêndoas. E também gosto de nozes e de pistachios.
Os meus pais às vezes perguntam se eu quero um mano mas eu gostava mais de ter um pónei."

Diogo fechou os estores e chorou. Compulsivamente. E gritou. De dor, de medo, de revolta. Cerrou os punhos com toda a força que (não) tinha e bateu na parede até doer. Lembrou o momento em que o chão lhe fugiu e o céu lhe caiu em cima. Sem estrelas nem planetas nem asteróides. Só vazio. Pesado. O vazio que fica quando se perde um filho. O vazio que se adensa quando se olha nos olhos da mulher que se ama e não se consegue ver nem o próprio reflexo. O vazio de quando se está só. E não se tem nem a própria sombra. Porque para haver sombra é preciso que, algures, haja luz.

Passam a vida a dizer-nos que cada um escreve o seu destino. Pergunto-me quem terá escrito o de Diogo, de Maria Beatriz e da Rosarinho.

Fui eu?

E o meu... Escreves tu?

June 26, 2013

EntreTanto



[Se a vida nos pede uma canção, brindemos-lhe com um álbum inteiro!]

Calçou uma meia preta e outra azul e saiu, sem rumo. Por uma vez na vida, Rosa quis saber o que era partir sem direcção, sem saber onde fica o Norte, o céu, ou o Sul. Esquecer-se que a vida fez de si um conjunto de regras meticulosamente planeadas e fazer da vida o que a vida quisesse dela fazer.
Olhou-se ao espelho: boina torta, bota suja. “Perfeito!”, pensou, “Hoje durmo no chão. Vamos lá ver se a coluna sempre aprende a posição!”. E saiu, de coração na mão e alma ao vento. Sem destino. Porque ninguém sabe onde mora a sorte.

Descendo à avenida, lá estava o senhor João. Todas as tardes fazia o mesmo: ia para a Infante Santo vestido de gala e chamava táxis já tomados. “Eu já não quero ir a lado nenhum, Menina. Por isso vou chamando só os que sei que não me levam.”, confessou-lhe um dia, a sair da tasca lá da rua, mais bebido do que a conta (e sem a querer pagar. Porque “isto não é conta que se apresente a um homem com o coração onde a dor roça a loucura”). Nesse dia, ele disse-lhe: “Oh Menina Rosa, escreva o que lhe vou dizer, que isto até rima. Fazer desenhos de castelos no ar é tão inútil como querer lá morar. Escreva o que lhe digo...”

Rosa passou por ele, sorriu, e continuou. Passando a paragem, recordou-se de como tudo começou. “Modernices”, dizia a dona Joaquina, sempre que a via ali sentada, à espera do 720, a sorrir para um ecran. Lembrou-se do primeiro encontro, dos assobios que fingiu não ouvir e do olhar mais demorado que nunca mostrou sentir. Do primeiro beijo, roubado, algures entre o Chiado e o Bairro Alto. Recordou o momento em que descobriu que, afinal, o amor não anda às ordens de ninguém, que a paixão não é segura e em que, cedendo, se deu. Lembrou  o dia em que descobriu que estar cego ao que se sente é um mal que acaba mal e em que, quase em desespero,lhe confessou “Se o Amor me prendeu, que culpa tenho eu de querer-te desta maneira?”.

Andou dois quarteirões... e voltou para casa. Pelo mesmo caminho, ao mesmo ritmo, com passos rigorosamente intervalados em tempo e espaço. À sua maneira.

A mensagem seguiu para ele por telefone: “entre o mal com que se conta e o bem que não se defende, há um nós que ninguém entende.” Ele respondeu rapidamente: “Coração, olha... o que queres que leve para o jantar?”. Ela sorriu e apressou o passo. Lembrou a reacção espontânea da melhor amiga quando Rosa lhe falou dele: “Narciso?? Qual é a probabilidade do homem da tua vida também ter nome de flor?”. Foi então que decidiu: “se for menina... vai chamar-se Margarida!”.

June 24, 2013

Kadett e Giulietta





O velho Kadett estava parado há já alguns dias à porta de casa. "Não me venhas buscar não, Henrique, e depois queixa-te que a bateria descarrega", pensou. Tinha passado a última semana e meia ali na rua. A Dona Francisca, quando passava, agora ainda mais devagar e já agarrada ao andarilho, descansava ali ao lado e dizia "Ai, Kadett, estás como eu. Já estamos como havemos de ir...". E ali ficava mais uns instantes, a falar sobre o tempo, as pessoas e o pouco sentido que ambos fazem nos dias que correm. Kadett sabia que a Dona Francisca tinha uma lucidez muito superior à de muitos jovens, até mesmo quando conversava com um carro.
E Dona Francisca lá seguiu, ao seu ritmo. Kadett acompanhou-a com o olhar, enternecido. Foi quando a velhota começou a desaparecer no fundo da rua que "ela" apareceu. Linda, branca, jovem, de uma elegância inigualável. "Que classe", pensou. À medida que a jovem se aproximou, tornou-se claro: vinha conduzida pelo Henrique. Kadett não ficou surpreendido. Sabia que, mais tarde ou mais cedo, isto iria acontecer... Só não tinha a certeza de estar preparado para ser trocado por uma "mulher".
Henrique passou, como o tempo, sem parar. Uma vez, duas, tantas. Um dia, estacionou mesmo em frente ao Kadett. Aproveitou para lhe colar uma folha manuscrita no vidro. "Trata"? Kadett não percebeu. Nem quis perceber.
Passou uma hora, duas, três... e ela continuava ali estacionada mesmo à sua frente. Linda, jovem, indiferente. Conseguiu finalmente ver-lhe o nome... Giulietta. Queria dizer-lhe alguma coisa, mas não conseguiu. Nunca conseguiria explicar-lhe que nenhuma aceleração se compara à do coração do Henrique quando, há 40 anos atrás, foi buscar pela primeira vez a Ivone para irem ao teatro. Que os travões ABS pouco interessam quando se transportam noivos, o primeiro filho, o segundo, o terceiro. Nunca seria capaz de lhe descrever a emoção de quem faz a primeira viagem do pequeno Tomás para a escola e depois a da Carminho. E as viagens diárias para o colégio, para a universidade e para a primeira entrevista do Duarte, o mais novo. Natais e Férias. Alegrias e tristezas. Os fechos centralizados passam a fazer muito pouco sentido quando a família se separa: se não conseguem chegar a um consenso em relação a nada, para que quererão abrir e fechar as portas em simultâneo?

Poderia dizer-lhe tanto, mas, naturalmente, não o fez. Uma jovem cheia de esperanças e de sonhos dificilmente ouviria um velho. E Kadett nunca foi muito dado a conversas. Muito menos com italianas.

June 14, 2013

Sara

Foto em: http://portakalkurdu.tumblr.com/post/52647770024

Desenhou-a como quis: primeiro ruiva, depois morena. Deu-lhe uns  olhos estreitos e pintou-os de castanho, mas pôs-lhe sardas e deu-lhe um sorriso com covinhas, para lhe dar alguma graça. Não a fez alta nem baixa, nem magra nem gorda, nem feia nem bonita. Em podendo, sempre escolhera para si a normalidade do mediano, no medo constante que o que é raro e extraordinário lhe quisesse fugir.

Depois, escolheu uma letra, e escreveu-a, em jeito de brincadeira: simples, segura, sincera, Sara. Sportinguista, tal como ele. Gostava de cães mas não suportava gatos, ouvia Sting e Shostakovich e não perdia um bom documentário sobre o 11 de Setembro. Andava à chuva se preciso fosse, mas era em casa, sentada à lareira, que gostava de estar. Junto dele.

Quando chegava a casa, Sara lá estava, à espera que ele a construisse mais um bocadinho. E, dia após dia, ele ia escrevendo, acrescentando-a. Devagarinho, como quem tem medo de perder o pé.

Passou a adormecer abraçado a ela todas as noites, sussurando-lhe histórias que a faziam sorrir. Acordava já de manhã,  na solidão inevitável de um apartamento vazio de gente e de si próprio.

Nunca a ensinou a escrever, apesar de tantas vezes Sara lho ter pedido. “Não quero que carregues em ti o peso de uma alma perdida em si própria.”, dizia-lhe, enquanto lhe passava carinhosamente a mão pelo rosto. “ Escrever torna tudo mais claro. Prefiro que vivas na ilusão de ti própria. Pudesse eu escolher...”.


No Outono, Sara desapareceu. No lugar dela, Gabriel encontrou apenas uma carta dactilografada. Abriu-a, e leu em voz alta. “Não me esperes. Fui procurar-me e, se voltar, chegarei certamente antes de mim. Nesse dia, abraça-me e não me largues nunca mais”. A carta estava pousada em cima da mesa e estava, estranhamente, assinada por ela.