July 08, 2013

A menina que escrevia




A luz riscada que passava pelos estores entreabertos pintava de laranja o quarto rosa-princesa (e um tanto ou quanto piroso) da Rosarinho. Diogo era um tipo estranho: gostava de ficar ali sentado na cama a olhar para a bonecada estacionada na estante, e de imaginar o que fariam aqueles Zés quando ninguém estava a olhar.
Emoldurada junto à cabeceira, estava a primeira composição de "Muito Bom" da Rosarinho.

"Os meus pais
Os meus pais são adultos mas já foram pequenos. A minha mãe chama-se Maria Beatriz é bonita e cheira bem. O meu pai é o Diogo, também é bonito e cheira mais ou menos bem. A minha mãe é médica dos velhinhos e o meu pai é engenheiro da electricidade e dos choques.
O meu pai diz que se fosse um animal queria ser um polvo para me agarrar com os braços todos, mas eu não gosto de polvo porque é um bicho um bocado porco que manda uma tinta preta pela boca.
A minha mãe está sempre a dizer ao meu pai para ele não tentar arranjar as torneiras quando elas se estragam porque é pior a amêndoa que o cimento. Mas eu gosto mais de amêndoas. E também gosto de nozes e de pistachios.
Os meus pais às vezes perguntam se eu quero um mano mas eu gostava mais de ter um pónei."

Diogo fechou os estores e chorou. Compulsivamente. E gritou. De dor, de medo, de revolta. Cerrou os punhos com toda a força que (não) tinha e bateu na parede até doer. Lembrou o momento em que o chão lhe fugiu e o céu lhe caiu em cima. Sem estrelas nem planetas nem asteróides. Só vazio. Pesado. O vazio que fica quando se perde um filho. O vazio que se adensa quando se olha nos olhos da mulher que se ama e não se consegue ver nem o próprio reflexo. O vazio de quando se está só. E não se tem nem a própria sombra. Porque para haver sombra é preciso que, algures, haja luz.

Passam a vida a dizer-nos que cada um escreve o seu destino. Pergunto-me quem terá escrito o de Diogo, de Maria Beatriz e da Rosarinho.

Fui eu?

E o meu... Escreves tu?

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