A luz riscada que passava pelos
estores entreabertos pintava de laranja o quarto rosa-princesa (e um tanto ou quanto piroso) da Rosarinho. Diogo era
um tipo estranho: gostava de ficar ali sentado na cama a olhar para a bonecada
estacionada na estante, e de imaginar o que fariam aqueles Zés
quando ninguém estava a
olhar.
Emoldurada junto à
cabeceira, estava a primeira composição
de "Muito Bom" da Rosarinho.
"Os
meus pais
Os
meus pais são adultos mas já foram pequenos. A minha mãe
chama-se Maria Beatriz é bonita e cheira bem. O meu
pai é o Diogo, também é bonito e cheira mais ou menos
bem. A minha mãe é médica dos velhinhos e o meu pai
é engenheiro da electricidade e
dos choques.
O
meu pai diz que se fosse um animal queria ser um polvo para me agarrar com os
braços todos, mas eu não gosto de polvo porque é
um bicho um bocado porco que manda uma tinta preta pela boca.
A
minha mãe está sempre a dizer ao meu pai para ele não tentar arranjar as torneiras quando elas se estragam
porque é pior a amêndoa que o cimento. Mas eu gosto mais de amêndoas. E também gosto de nozes e de
pistachios.
Os
meus pais às vezes perguntam se eu quero
um mano mas eu gostava mais de ter um pónei."
Diogo fechou os estores e chorou.
Compulsivamente. E gritou. De dor, de medo, de revolta. Cerrou os punhos com
toda a força que (não)
tinha e bateu na parede até doer.
Lembrou o momento em que o chão lhe fugiu
e o céu lhe caiu em cima. Sem
estrelas nem planetas nem asteróides. Só
vazio. Pesado. O vazio que fica quando se perde um filho. O vazio que se adensa
quando se olha nos olhos da mulher que se ama e não
se consegue ver nem o próprio
reflexo. O vazio de quando se está
só. E não
se tem nem a própria
sombra. Porque para haver sombra é
preciso que, algures, haja luz.
Passam a vida a dizer-nos que cada um
escreve o seu destino. Pergunto-me quem terá
escrito o de Diogo, de Maria Beatriz e da Rosarinho.
Fui
eu?
E o
meu... Escreves tu?
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