June 14, 2013

Sara

Foto em: http://portakalkurdu.tumblr.com/post/52647770024

Desenhou-a como quis: primeiro ruiva, depois morena. Deu-lhe uns  olhos estreitos e pintou-os de castanho, mas pôs-lhe sardas e deu-lhe um sorriso com covinhas, para lhe dar alguma graça. Não a fez alta nem baixa, nem magra nem gorda, nem feia nem bonita. Em podendo, sempre escolhera para si a normalidade do mediano, no medo constante que o que é raro e extraordinário lhe quisesse fugir.

Depois, escolheu uma letra, e escreveu-a, em jeito de brincadeira: simples, segura, sincera, Sara. Sportinguista, tal como ele. Gostava de cães mas não suportava gatos, ouvia Sting e Shostakovich e não perdia um bom documentário sobre o 11 de Setembro. Andava à chuva se preciso fosse, mas era em casa, sentada à lareira, que gostava de estar. Junto dele.

Quando chegava a casa, Sara lá estava, à espera que ele a construisse mais um bocadinho. E, dia após dia, ele ia escrevendo, acrescentando-a. Devagarinho, como quem tem medo de perder o pé.

Passou a adormecer abraçado a ela todas as noites, sussurando-lhe histórias que a faziam sorrir. Acordava já de manhã,  na solidão inevitável de um apartamento vazio de gente e de si próprio.

Nunca a ensinou a escrever, apesar de tantas vezes Sara lho ter pedido. “Não quero que carregues em ti o peso de uma alma perdida em si própria.”, dizia-lhe, enquanto lhe passava carinhosamente a mão pelo rosto. “ Escrever torna tudo mais claro. Prefiro que vivas na ilusão de ti própria. Pudesse eu escolher...”.


No Outono, Sara desapareceu. No lugar dela, Gabriel encontrou apenas uma carta dactilografada. Abriu-a, e leu em voz alta. “Não me esperes. Fui procurar-me e, se voltar, chegarei certamente antes de mim. Nesse dia, abraça-me e não me largues nunca mais”. A carta estava pousada em cima da mesa e estava, estranhamente, assinada por ela. 

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