June 24, 2013

Kadett e Giulietta





O velho Kadett estava parado há já alguns dias à porta de casa. "Não me venhas buscar não, Henrique, e depois queixa-te que a bateria descarrega", pensou. Tinha passado a última semana e meia ali na rua. A Dona Francisca, quando passava, agora ainda mais devagar e já agarrada ao andarilho, descansava ali ao lado e dizia "Ai, Kadett, estás como eu. Já estamos como havemos de ir...". E ali ficava mais uns instantes, a falar sobre o tempo, as pessoas e o pouco sentido que ambos fazem nos dias que correm. Kadett sabia que a Dona Francisca tinha uma lucidez muito superior à de muitos jovens, até mesmo quando conversava com um carro.
E Dona Francisca lá seguiu, ao seu ritmo. Kadett acompanhou-a com o olhar, enternecido. Foi quando a velhota começou a desaparecer no fundo da rua que "ela" apareceu. Linda, branca, jovem, de uma elegância inigualável. "Que classe", pensou. À medida que a jovem se aproximou, tornou-se claro: vinha conduzida pelo Henrique. Kadett não ficou surpreendido. Sabia que, mais tarde ou mais cedo, isto iria acontecer... Só não tinha a certeza de estar preparado para ser trocado por uma "mulher".
Henrique passou, como o tempo, sem parar. Uma vez, duas, tantas. Um dia, estacionou mesmo em frente ao Kadett. Aproveitou para lhe colar uma folha manuscrita no vidro. "Trata"? Kadett não percebeu. Nem quis perceber.
Passou uma hora, duas, três... e ela continuava ali estacionada mesmo à sua frente. Linda, jovem, indiferente. Conseguiu finalmente ver-lhe o nome... Giulietta. Queria dizer-lhe alguma coisa, mas não conseguiu. Nunca conseguiria explicar-lhe que nenhuma aceleração se compara à do coração do Henrique quando, há 40 anos atrás, foi buscar pela primeira vez a Ivone para irem ao teatro. Que os travões ABS pouco interessam quando se transportam noivos, o primeiro filho, o segundo, o terceiro. Nunca seria capaz de lhe descrever a emoção de quem faz a primeira viagem do pequeno Tomás para a escola e depois a da Carminho. E as viagens diárias para o colégio, para a universidade e para a primeira entrevista do Duarte, o mais novo. Natais e Férias. Alegrias e tristezas. Os fechos centralizados passam a fazer muito pouco sentido quando a família se separa: se não conseguem chegar a um consenso em relação a nada, para que quererão abrir e fechar as portas em simultâneo?

Poderia dizer-lhe tanto, mas, naturalmente, não o fez. Uma jovem cheia de esperanças e de sonhos dificilmente ouviria um velho. E Kadett nunca foi muito dado a conversas. Muito menos com italianas.

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